O filme A garota ideal aborda questões muito importantes para a prática do psicólogo, principalmente aos que se dedicam à área de compreensão do que é o Pathos e seus destinos infinitos, dentre eles, o de Hybris. Aproveitando o ensejo freudiano no qual a arte nos dá a possibilidade de experimentarmos “o como se fosse real”, julgo o conteúdo desse filme de extrema importância como um meio suficientemente bom de baliza da prática psicoterapêutica, permitindo a discussão dos modos possíveis de atuação profissional, assim como, a atitude da família e a importância do social como uma rede consistente de inserção e apoio do humano em adoecimento.
O filme narra sobre um homem (Lars) com, aproximadamente, 28 anos que vive numa cidade pequena nos Estados Unidos e possui uma vida solitária. Habita na casinha dos fundos da residência do irmão mais velho (Gus), que é casado com Karin, e aguardam um bebê. Durante o começo do filme fica-nos claro o comportamento de extrema timidez do Lars, a incapacidade de se socializar, suas estratégias para que ninguém toque o seu corpo, seu embotamento afetivo entre outros comportamentos que provocam uma certa estranheza às pessoas, mas que ficam apenas como uma fantasia distante de que algo pudesse estar errado, como suspeitava sua cunhada Karin - “será que tudo está bem com Lars? Ele é tão distante e estranho”.
Este se envolve com uma garota estrangeira, com formação cristã, tímida, prestativa, bonita, que ele recebe em sua casa depois de tê-la conhecido pela internet. Enredo ideal para uma história de amor, salvo se Bianca não fosse uma boneca inflável adquirida por meio de um site pornô que possuía como slogan a possibilidade de construção de sua mulher ideal. Destarte, o filme se desenrola com Lars apresentando Bianca ao irmão e cunhada que estupefatos argumentam: “Isso é normal? Meu irmão está louco e agora vou ter que cuidar dele? Será que ele tem jeito? Porra, terei que pagar sua internação”. No transcorrer do filme percebe-se que Lars possui sintoma de delírio, visto a convicção anímica de realidade atribuída a Bianca como se real o fosse.
O mais interessante que me mobilizou a escrever sobre a importância deste filme é que as pessoas não medicalizaram Lars ou atribuíram sentido aos seus Delírios à parte dele, mas sim com ele. Permitindo a possibilidade de que Bianca vivesse como se fosse real e por meio da interação idealizada por Lars ficava claro a relação de identificação que ele estabelecera com sua namorada ideal, perceptível, por meio, de características em comum, tais quais: gostos, condutas, medos, expectativas etc. Sendo este material explorado pela psicóloga que maneja a transferência de maneira ideal trabalhando com a semiologia simbólica, na qual se preocupa entender o paciente como o sintoma, fortalecendo o vínculo terapêutico de confiança no qual o protagonista vai desabafando suas queixas sobre Bianca, mas que na verdade diz a respeito do seu próprio modo de ser, dos seus medos, traumas e inseguranças, fornecendo a chave de abertura para a porta que encerra seus conflitos. Diante da dualidade mundo real e realismo psíquico, é permitido a Lars que ele organize suas pulsões e se reinsira no mundo compartilhado com as pessoas, sendo o delírio uma tentativa bem sucedida de inserção na realidade.
O filme de maneira muito sensível aborda a psicopatologia da vida cotidiana mostrando as manias, fobias e comportamentos inadequados dos ditos normais, qualitativamente similares aos de Lars, mas que se diferem quantitativamente, corroborando com o argumento de que o adoecimento é muito mais um quantum, uma noção do metrun ou da boa medida, do que uma loucura ou desvio bem demarcado, fazendo-nos refletir sobre os diversos conceitos de normalidade, fugindo do modelo sindrômico médico e compactuando com a idéia de que não há um fosso entre o normal e o anormal. Sendo de fundamental importância o surgimento de uma fenomenologia do sofrimento, esta justificando como nos argumenta Francisco Martins uma clínica que qualifique o paciente enquanto portador de saber para resolução do seu sofrimento, uma clínica do psíquico.
REFERÊNCIA:
FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana. (1901). Edição Standart Brasileira, Vol. VI, Rio de Janeiro: Imago.
MARTINS, Francisco. Psicopathologia I, Prolegômenos. Belo Horizonte: Editora Pucminas, 2005.
Muito bom o texto
ResponderExcluirBela reflexão!
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